Ana Bárbara Pedrosa é de Vizela, nasceu em 1990, estudou em Portugal, no Brasil e nos Estados Unidos. Em 2019, publicou o romance Lisboa, chão sagrado (Bertrand). Publicou ainda o “A Palavra do Senhor” e faz crítica literária no Observador. É doutorada em Ciências Humanas, mestre em Estudos Portugueses, pós-graduada em Linguística e em Economia e Políticas Públicas e licenciada em Línguas Aplicadas. Foi convidada a olhar para o FC Vizela-FC Famalicão com outro olhar e a escrever sobre o jogo à luz do 19 de março que se assinalou poucas horas depois do fim do desafio. Este é o resultado. Vale a pena ler.
O futebol é como a vida – só acaba no último minuto. Foi sofrido, este Vizela-Famalicão, e a equipa que se lançava em frente prometia golos e explosão. Acho que nenhum vizelense acreditou que saíssemos dali a zero. E, a perder já entrados nos 90, acreditávamos todos que íamos ganhar.
Cassiano fez o que faz bem – levantou o estádio. E o estádio no fim do jogo pôs-se outra vez de pé por ele. O futebol tem sempre muita raiva, muitos palavrões, às vezes ódio, é bom ver centenas a aplaudir de pé alguém – esse alguém que agora é nós. Cassiano nasceu, diz-me a Wikipédia, no Rio Grande do Sul, mas bastou-lhe marcar uns golos para ser azul e branco.
O futebol do Vizela marca-se de muita vontade de ir para a frente. Às vezes, a bola perde-se (quem nunca?), e continua-se até que a sorte vire para o nosso lado. Por isso, quando o Nuno Moreira aquece, o estádio também fica quente: basta-lhe subir ao relvado para sabermos que correrá com a bola, e só não temos pena de quem é fintado forte e feio porque queremos lá saber. Quando o Nuno se veste de azul, só queremos pernas bambas do outro lado. O gajo nunca faz por menos e garante-as sempre. De todas as histórias de amor do mundo, nenhuma me enleva tanto como a que temos com Vizela. É difícil explicar isto aos forasteiros. Eu digo “Levántamos a linha”, e perguntam-me: “Mas que idade tinhas? Há quanto tempo foi?” Eu lá acrescento que nem nascida era, mas essa evidência não basta para que eu não fizesse parte desse nós. Eu já era nós em 1982, como era nós séculos antes. Quando se nasce e cresce em Vizela, já não há volta a dar: é amá-la até ao fim e antes do início. O concelho de Vizela fez-se finalmente em 1998, o Nuno Moreira nem nascido era, o Cassiano era uma criança, o Samu, o Kiko e o Pedro Silva eram bebés, e se demorássemos mais um bocado o Koffi teria a idade do concelho. Nada disso invalida que ergam o estádio de azul, e se alguém perguntar de quem são dizemos que são nossos. O futebol de Vizela faz-se da história que atravessou séculos. Um jogador atrapalha-se, os adeptos reclamam: “Não foi para isso que levantámos a linha.” Pela idade, topa-se logo se o adepto a levantou ou não, mas mesmo que não o tenha feito esteve lá.
É que a coisa atravessou séculos, o que foi de um foi de todos. E podia ter-se resolvido tudo 637 anos antes, mas não foi assim tão fácil. Persistiu-se contra tudo, como se faz no futebol, até ao segundo de glória. Isto não surpreenderá quem souber o que é um grande amor: as paixões totalizantes são assim.
Há muitos anos, quase no tempo em que os animais falavam, um rei devolveu a nossa terra à jurisdição da outra. Deixámos passar os séculos, os reis morreram todos, meteu-se uma República, sobreviveu-se à ditadura e, após alguns projectos falhados entre o término da monarquia e a chegada do 25 de Abril, o processo autonómico marchou em força para a Assembleia da República.
Não deu em nada e o povo deu em doido. Quem espera seis séculos já não tem paciência para mais nada. Em 1982, o povo perdeu a cabeça, levantou 1800 metros de linha férrea à mão. À entrada da vila que queria ser cidade, um cartaz proibia a entrada a políticos e vimaranenses. Pelo meio, o caos: agências bancárias ocupadas, Posto de Turismo assaltado, carros vandalizados. Quando a CP tentou recolocar a via férrea, foi o caos com o povo a impedir a reparação da linha. Durante a noite, Vizela tornou-se num campo de batalha. O dia chegou, o comércio encerrou, o povo marchou para Braga. A revolta fez-se ante o Governo Civil. Dias depois, as placas toponímicas com o brasão do inimigo foram retiradas das ruas de Vizela.
Em Dezembro, nas eleições autárquicas, a sirene tocou a rebate, explodiram foguetes no ar, o povo tomou as assembleias de voto de assalto, violou as urnas, destruiu os boletins de voto. Não se queria um governo local em Guimarães. O povo viu na democracia autárquica uma ditadura e a ditadura insistiu mais uma vez: uma semana mais tarde, repetiu-se o acto eleitoral. O povo saiu da cama, teimoso como o maior amor do mundo, com o maior amor do mundo erguido como uma coroa: novo boicote, os eleitores recusaram-se a votar. Não estive lá, mas alguém me contou, e como sou vizelense estive lá.
As feridas sararam, o povo acalmou. No dia 19 de Março, a coisa lá se fez finalmente. A rua de S. Bento transtornou-se com o povo em vitória e toda a cidade também.
Tudo isto que se passou há muito tempo e durante muito tempo está em jogo sempre que o Vizela vai a jogo. Dos jogadores, que agora são nós, espera-se sempre que tenham a mesma falta de cansaço. E que bom é vê-los do lado da melhor história do mundo, sempre a correr para o mesmo lado. Contra os azares, há que ver a baliza à frente, não parar de correr nesta coisa que é igual à vida e que só acaba no último minuto. Cassiano já marcou depois do último e mesmo assim ainda julgámos todos que era possível marcar outro.
Há demasiada história num só golo do Vizela.